Desde a confirmação dos primeiros casos, falava-se muito sobre como o coronavírus era um vírus “democrático”, isto é, qualquer pessoa poderia ser infectada independentemente de sua classe social, local de residência, etnia etc. Entretanto, não demorou muito para descobrirmos que a ideia de um vírus “democrático” era, na verdade, uma falácia.
Quanto mais conhecemos como o coronavírus se espalha e opera, mais entendemos que o coronavírus acentua as desigualdades sociais. Os primeiros casos no Brasil ocorreram com aqueles que haviam viajado para o estrangeiro, indicando aí que as classes mais altas tinham trazido o vírus para o Brasil. Não demorou muito para o vírus transitar dos bairros de classe alta para as comunidades mais pobres.
O primeiro caso de morte pelo coronavírus no Rio de Janeiro foi de uma mulher negra, empregada doméstica, que trabalhava na casa de um casal no Leblon que havia passado o carnaval no Itália. Embora já estivessem doentes, eles não avisaram a empregada do perigo e ela continuou trabalhando na casa e ajudando o casal, como fazia há mais de dez anos.
Esse caso me chocou muito pelo contexto escravocata tão escandalosamente óbvio: um ato desumano de exploração do trabalho, onde o patrão não enxerga a funcionária como um outro ser humano e acha perfeitamente normal que a empregada continue o servindo, sem nem ao menos notar ou se importar com sua vida.

A morte dessa senhora (seu nome não foi revelado a pedido da família) se tornou um símbolo da nossa sociedade estruturalmente racista. Nas semanas que se seguiram, descobriu-se que existiam centenas de outras empregadas domésticas na mesma situação - pressionadas pela necessidade do trabalho, continuavam a ir às casas das suas patroas, enfrentando o constante perigo de contaminação.
Outro caso de invisibilidade das empregadas domésticas se deu em uma live da atriz Isis Valverde, em março (2020), onde ela pedia para as pessoas não saírem de casa por causa da pandemia enquanto que, ao fundo do vídeo, era possível ver uma funcionária negra trabalhando.
A medida que vivemos a pandemia, fica cada vez mais evidente esse entrelaçamento entre coronavírus, raça e classe social. São Paulo é o Estado com maior número de atingidos pela pandemia, sendo que Brasilândia (uma favela de São Paulo) é o local com maior número de mortes – a maioria da população em Brasilândia é pobre, negra e sobrevive de trabalhos informais.
Essa disparidade racial e social exacerbada pelo coronavírus, também ocorre nos Estados Unidos. Aqui no epicentro da pandemia do mundo, os negros e os latinos se tornaram desproporcionalmente as comunidades mais afetadas.
Por exemplo, em Louisiana, onde 33% da população é negra, mais de 70% das mortes pelo coronavírus são dos negros. Na cidade de Nova York, os latinos e os negros têm duas vezes mais chances de morrer do vírus em comparação com o branco (dados divulgados pelo governo local). Essas populações tendem a ser mais pobres, ter menos acesso a alimentos nutritivos e, consequentemente, ter doenças como diabetes e um sistema imunológico mais fraco.
O coronavírus criou muito mais que uma ruptura das nossas práticas diárias. O seu impacto em certas populações mais que em outras nos faz enfrentar perguntas difíceis: Estaríamos nós, conscientes ou não, contribuindo para uma hierarquia de valores humanos em tempos de pandemia? Até que ponto nós realmente valorizamos todas as vidas da mesma forma?
Denise M. Osborne é araxaense, professora na University at Albany (State University of New York, EUA) e doutora pela University of Arizona em Aquisição e Ensino de Segunda Língua. E-mal: dmdcame@hotmail.com